terça-feira, 2 de novembro de 2010

A Morte




"A morte torna a vida maravilhosa.Porque vamos morrer precisamos poder dizer hoje que amamos, fazer hoje o que desejamos tanto, abraçar o filho ou o amigo, temos que ser decentes hoje, generosos hoje, felizes hoje. (Lya Luft)"


Estavam sentados lado a lado. Cada qual numa poltrona, essas forradas com um tecido nobre mas meio puído, ficavam de frente para um antigo aparelho de televisão e eram separadas por pequena mesa de centro de pés de palito.
O televisor ligado num desses barulhentos programas dominicais num volume muitos decibéis acima do agradável, sugeria a quem olhasse os dois personagens que esses acompanhavam os dissabores e humilhações inflingidos aos pobres calouros que se sucediam num palco perante platéia cruel.
Isso porque os dois, homem e mulher, tinham, aparentemente, os olhares voltados para as cenas grotescas.
Mas de verdade eles conversavam e havia um tom de segredo e cumplicidade nessa conversa.
Ele, mais velho, aparência nobre e altiva, usava um solene terno, com colete, azul marinho. Os cabelos, lisos, negros como seus olhos, mostravam já os fios brancos do tempo. Mesmo com o aprumo e elegância era perceptível o desgaste em seu traje, meio velho, meio brilhante pelo uso excessivo. Mas havia naquele homem um inegável traço régio, mesmo decadente, que provava sua origem ancestral de alguma nobreza italiana do norte.
Ela, jovem, muito jovem, quase parecia menina pela pequenez de seu físico, inquieta, usava rabo de cavalo e muitas pulseiras coloridas e cheias de guizos que produziam sons delicados com o movimento de seus braços.
Ela acreditava em signos do zodíaco, em espíritos que deslizam com perfume de lírios, em vidas sucessivas, em livros e poetas. Ele, pensador, acreditava em muito pouco e em tudo ao mesmo tempo, criara teorias evolucionistas, mantinha correspondência com sábios, jornalistas e antigos presidentes.
Ali, naquele dia, ele contava à moça que fora marcado pela morte.
A morte tinha sido, desde sempre, sua companheira. Nascido num Finados, dia 2 de novembro, sofrera, ainda menino, um ataque de catalepsia, chegou mesmo a ser velado na cama dos pais e procurara a vida toda, explicação plausível para tudo isso. Restou uma enorme afinidade com o assunto.
Ela se surpreendia com os relatos desse senhor de escorpião, signo tão ligado com transmutações, mistérios, com o morrer em todos os níveis numa carta astral.
Nesse dia ele, num tom de mestre para discípula, lhe pedia para nunca temer a morte, pois, mesmo sabendo o quanto isso era complicado para alguém tão jovem, ela viveria muitas mortes durante sua existência.
Pequenas, aparentemente insignificantes, mas mortes, de sonhos, projetos e ilusões que teriam de ser sacrificados diante da vida e suas exigências. E que mesmo em tais momentos, que certamente seriam de profundo desencanto e até desespero, nunca pedisse a morte, a morte final. Afinal, completava ele sorrindo, ela vem mesmo para todo mundo, no tempo certo.
Nesse dia ele a fez prometer, solenemente, que seria sempre assim.
E durante muitos e muitos domingos, ele e ela puderam falar sobre tudo a morte. E sobre muitas outras coisas da vida.
O homem velho foi, enquanto viveu, uma espécie de guru, de mentor para a moça. Ele lhe trouxe os filósofos, os cientistas, os escritores e Beethoven e Mozart.
Puderam juntos, ver duas crianças nascerem e crescerem, ver casamentos terminarem, começarem, pessoas virem e irem, mas o afeto que os uniu jamais foi quebrado.
Essa foi uma morte que nunca aconteceu.

E todos os anos, num dia de Finados, a moça, hoje quase um senhora idosa, coloca num vaso pequena flor para ele, não como homenagem respeitosa aos mortos, mas como um pequeno gesto de " feliz aniversário".

Para Rosino Zacchi, sogro, pai, avô de meus filhos, amigo e filósofo, com imenso carinho e admiração.

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