terça-feira, 6 de outubro de 2009

Para a Gorda...( de Gil, meu marido)

Coloco aqui hoje, terça-feira, o relato impecável e emocionado de alguém mil vezes mais competente que eu para escrever.
Aqui vai o texto/depoimento de Gil, meu marido, aquele que escolhi e me escolheu para sermos cada dia mais o que somos...


Conheci a Gorda precocemente para alguém do meio em que eu vivia. E me apaixonei por ela tardiamente para alguém da minha geração.
Era 1972, eu um garoto de 14 anos descobrindo que lá fora tinha um mundo, tentando comer uma vizinha argentina de 16 anos, que conquista!!!! E eis que me deparo com o argentino velho, mais cioso de seus discos que da virgindade da filha (possivelmente já inexistente) e que interrompe nosso desajeitado idílio com um convite para que os ouvíssemos com ele. E, após vários e que na época me pareceram insuportáveis Gardéis (claro, eu não via a hora do velho cair fora), ele pôs na velha Grundig um disco de uma cantora da qual eu nunca havia ouvido falar, velha, gorda e cara de índia estampada na capa do LP. Desculpe, Mercedes, mas na hora, os atributos da outra argentina me atraiam mais. E desculpe outra argentina, cujo nome sequer me recordo, mas no dia seguinte eu me lembrava mais da voz da velha gorda do que de você.
Ano seguinte, e fui levado pelo meu irmão, quase pela mão como uma criança, a um show de Astor Piazzolla, na USP. E ali, em meio a seus novos amigos, universitários, mais velhos, comprometidos com o que depois vim a saber que seria a esquerda, ouvi novamente o nome da Gorda, agora com um respeito e uma deferência bem maiores que os demonstrados pelo velho argentino. Talvez o momento tenha contribuído para a importância que dei às frases berradas numa mesa de um boteco na saída da cidade universitária. Piazzolla havia sido um passaporte para um mundo que eu não sabia que existia, mas com o qual, de imediato, me identifiquei. Naquela mesa, pela primeira vez ouvi a expressão América Latina sem o tom de galhofa, talvez pela primeira vez tenha me deparado com a dimensão de viver sob uma ditadura, pela primeira vez tenha tomado contato com o que eu viria a ser. E o nome da Gorda sempre presente, um ícone que pairava sobre a conversa. Interessante que não me lembro de Piazzolla ter sido mencionado durante as horas que passamos ali. Não era necessário, ele cumprira um papel maior, a beleza de sua música fora o Virgilio e o Prometeu que me abrira as portas do inferno e da beleza chamada América Latina.
Não me lembro de ter ouvido a Gorda nos anos seguintes. A arrogância e os medos da adolescência fizeram-me citá-la várias vezes para mostrar meu diferenciamento e a não ouvi-la para preservar o ícone que começava a ganhar forma na minha personalidade imatura. Lembro sim de ter ouvido muito Piazzolla, e o disco que comprei na saída do show, com minhas parcas economias da mesada, foi responsável por inumeráveis atrasos quando eu insistia em ouvir o solo, 5 minutos de piano, da introdução de Adiós Nonino.
Voltei a ouvir a Gorda já na faculdade. Ela foi meu cartão visita para aquele novo momento. Minha matrícula se fez ao som de “Me gustán los estudiantes”, uma metáfora do que seriam aqueles anos. Anos em que ser estudante carregava consigo uma carga de combatividade, de enfrentamento, de inconformismo. E para tudo isso, a Gorda tornou-se a Voz. Um brado, uma resposta que meus parcos conhecimentos de espanhol mais sentiam do que entendiam, mas entendiam talvez mais que o entendimento pudesse oferecer.
Lembro do ano de 1979. Tínhamos a diretoria do DCE da USP e do Centro Acadêmico da FAU. Condições que julgávamos suficientes para organizar shows, para os quais contávamos com a boa vontade de nomes como Jorge Mautner, Walter Franco, e outros engajados e periféricos como nós. Até um dia em que nos julgamos maiores que éramos e ousamos trazer a Gorda. Que, apenas nossa arrogância impediu que nos surpreendêssemos, aceitou. E preparamos o show. Ou pensamos que preparávamos. Ou confiamos nas instituições da ditadura que combatíamos e não nos apercebemos que tudo o que denunciávamos, desleixo, descaso com a Educação, iria desabar sobre nós. Minutos antes do show, teatro da FAU lotado, um curto circuito põe todo o auditório às escuras. Pânico entre a platéia e desespero entre os organizadores e, em meio a isso, uma única voz mantinha a serenidade. Ainda me lembro da Gorda, falando numa voz tão baixa quanto seus imensos pulmões permitiam: “Eu vim para cantar e vou cantar, em qualquer lugar. Peçam aos meninos para sentarem lá fora, é seguro”.
Lá fora é o pátio interno à frente do teatro da faculdade de Arquitetura da USP. Seguro era um otimismo de quem havia passado por momentos infinitamente mais difíceis. O projeto do prédio, obviamente de um arquiteto, é belo e irracional, todo em rampas e planos sem grades ou defensas, o que conferia à multidão apinhada e buscando melhores ângulos de visão um risco maior que de um mero curto circuito. E os meninos eram seu público, nós, a quem ela dispensou a cortesia e o amor de cantar sem microfone ou qualquer amplificação, pois não ousávamos tentar ligar a aparelhagem após o incidente dentro do teatro.
Minutos de intenso trabalho braçal, com os encarregados da suposta e fracassada organização, carregando tablados de madeira do palco para “lá fora”, bancos, instrumentos, e uma preocupação egoísta, pouco comunista, mas de todo inevitável: assegurar que tivéssemos um lugar privilegiado para vê-la e ouvi-la. Confesso que foi uma das poucas vezes na vida em que me locupletei de algo, mas a condição de ex-organizador e agora carregador possibilitou-me sentar a menos de dois metros Dela, bunda no chão, braços doloridos, coração disparado e olhos molhados durante as duas horas de show.
Faz trinta anos. Podem fazer trezentos e serão igualmente inesquecíveis. Ditadura no Brasil, ditadura no Chile, ditadura na sua Argentina e a Voz cantando para los estudiantes um sonho que era de luta, mas também de amor, de paixão, de vida. Não sabia se tinha a menos de dois metros minha mãe, minha avó, meu ídolo ou minha deusa, sei que só a ridícula vergonha me impediu de beijar sua mão ao cumprimentá-la no palco improvisado.
A Gorda amparou meus sonhos de esquerda, mas também de vida. Vinte anos depois dessa noite, minha então namorada, hoje minha mulher, deu-me uma fita cassete (velhos tempos) com músicas que eram importantes para ela e que queria compartilhar comigo. Eram tempos de descoberta mútua, de conhecer o passado e o mundo do outro. E entre as músicas, todas maravilhosas, havia uma que ainda me transporta àquele momento. Era a Gorda cantando Te recuerdo Amanda, de Victor Jara. Uma música de amor, talvez um amor que só a esquerda tenha sido capaz de produzir e cantar. Mas de amor. Naquele momento tive a certeza que teríamos que ficar juntos, como estamos até hoje e pretendo que para sempre. Pois, depois de mais de meio século de vida compreendi o pouco que retive de minha trajetória. Entre esse pouco está que não tenho amigos ladrões, traficantes, corruptos. E jamais estaria com alguém que também não ame a Gorda.

Gil
06/09/2009

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